quarta-feira, 21 de fevereiro de 2018

Em como a vida se tornou um gajo estranho

O dia acabou-lhe mais cedo. De facto, nos últimos tempos era cada vez mais assim: muito para além da existência triste que Joaquim Nando levava desde a célebre noite que ficou conhecida como a-noite-do-livro-preterido (livro que ironicamente tinha bastantes coisas em comum com ele), as coisas na chamada "vida geral" tinham mudado bastante. Os concertos a que anos antes assistia frequentemente escasseavam cada vez mais. As bandas de putos eram agora lançadas através de home-videos em páginas ranhosas da net , capazes de espalhar música do Butão ao Malaui mas falhadas, porém, na verve que não transmitiam. Não bastasse isto, os próprios dos seguidores dos putos achavam-se agora no direito de também terem alguma coisa a dizer, escrevendo crónicas infindáveis sobre a fantástica performance da noite anterior das Romantic Filthy Whores na casa-de-banho do número 16 da Rua Mouzinho da Silveira. Usavam expressões como "a maior lição de punk-pós-modernista-metal-mosh-core desde 2015" ou "o conjunto de coxas mais desenvolutas de sempre numa banda de gajas", ignorando o que seria um bom bafo de calor produzido em concertos no antigo estádio de Alvalade acompanhado de música de jeito.
Como existencialista que sempre foi, Joaquim Nando não ignorava a origem dos sinais do tempo. Toda a situação em que se encontrava fora gerada pela célebre "democratização da cultura" propagandeada pelos primórdios da internet; sempre que pensava que ele próprio tinha imaginado este desfecho, pensava que a frustração era um sentimento nobre quando justificada por premonições. Isto de estarmos todos em comunidade é uma cena fodida, pensava. É por estas e por outras que sempre concordei com a democracia selectiva. Se ela existisse, quem sempre soube de música continuaria a escrever sobre o que sabe. Não tinham de vir para aqui estes palhaços cibernautas armados em cronistas musicais.
Os seus pensamentos relacionados com a democracia foram crescendo com os seus dramas pessoais. Recordava muita vez a questão democrática que lhe tinha mudado a vida: a noite em que Cláudia se tinha despido para Serge Gainsbourg, partilhada democraticamente com cerca de cinco mil melómanos. Lembrava-se, com um nó no estômago, do momento em que ela saltou para o palco quando soou a Lémon Inceste e do momento em que ele desatou a chorar, quando o je t'aime tellement, je t'aime plus que tout não lhe foi dirigido. A partir desse momento descobriu que o seu objecto de adoração tinha começado a ser adorado por tantos outros milhares de pessoas. Numa questão de minutos, a proporção de pessoas que comentava a actuação de Cláudia era igual ao nível de desinteresse de Joaquim Nando nela. O mesmo se passava agora na sua relação com a música: já não tinha o mesmo interesse porque já não podia falar, em exclusivo, sobre ela.
E era nesses dias que acabavam mais cedo que Joaquim Nando se lembrava sempre do episódio do concerto, bem como a angústia, desalento e desesperança que ele carregava. Fazia uma analogia bizarra da sua vida actual com esse episódio - o do dia em que deixou de gostar de Serge Gainsbourg para preferir o Scott Walker. O dia em que deixou de acreditar no amour plus que tout para preferir as girls from the streets.
A sua vida era, para sempre e agora, assim.